sábado, 31 de março de 2012

A linha cinzenta e branca

Invisível a folha branca não fala
Não se move nem procura a ternura
A folha voa, fugidia, altiva e crua
É branca, tão branca e impossível.
A cor não existe na folha branca
A cor desdisse que é cor.
É branca. É ausente.
A folha branca não sabe que o amor não existe.
Que o amor é uma abstracção do céu.
É tarde para amar agora que o branco chegou.
Uma parede alta ergueu-se na fronteira cinzenta dos corpos.
Há pó invisível pesado e o ar rarefeito sem brisa não ecoa.
As estrelas balançam na inquietação agitada dos seus cinco braços.
O corpo não sabe, só dói.
A folha não pensa pesada e branca.
Descansa leve no mar, com o universo por baixo.
O amor são as ondas mudas, em silêncio.
A folha branca continua.
Muito branca.
Cheia de estrelas invisíveis por nascer.

a mudança e o solstício


Bill Brandt


era um dia dos mais frios
não tinha previsto essa roupa de gelo
dobrava a alma, corria um fecho sobre a tarde cinza
lembrava-se dela como se a encontrasse hoje
deitada sobre um livro, como se fosse um campo de lírios –

anunciaram outro dia a mudança e o solstício, quem dera, disse –

a interrogação é constante, uma lua é um espaço branco
não tem mãos rugosas nem lâminas nos brilhos
é um outro espaço, um espaço platina
um espaço entre estrelas
onde por vezes surgem incessantes
não legítimos
um manto negro e nebulosas que não adivinha;
mas assim é o sangue quando corre no oxigénio
um rio, vermelho e vivo
percorrendo caminhos –

essa é a parte que espera
uma janela sem vidros, sem cortinas e nunca sem linhas
que seguram um balão ou enrolam um novelo de fios
como quando a mãe era ainda menina e ele pequenino
como quando engraxava sapatos e recebia uma moedinha
como quando uma tarde inteira passava roupa
e tinha muito cuidado com os colarinhos
com os vincos das roupas, as marcas longínquas
que andavam na rua e eram difíceis –

o mundo não é insustentável, digo-te
pode ser limão ou manga
uma cadeira de verga, singular e repetida
ou mãos dadas e rostos de diamante
ou uma dança de rumba e um mar de chamas –

o mundo pode ser tudo se acreditares antes do fumo
em ti e no mundo –

o mundo pode ser tudo, o impossível -

repara
o impossível é construído
é algo que se acrescenta e nos toca os lábios
como um raio de luz ou uma onda perdida
nos toca, mesmo que não agora, de braços à volta, mesmo que não agora
mas pode, no futuro –

repara
o impossível é construível
o impossível nasce do possível
quando se junta uma sílaba –

repara e acredita
o mundo é verde, sustentável, digo-te
acredita –

josé ferreira